sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Primeiro Voo

Um homem andava por um corredor escuro, uma espécie de túnel. Não se lembrava de ter passado por lá antes, mas ainda assim o lugar lhe parecia muito familiar, como se cada passo lhe trouxesse lembranças da própria vida. Só o que se ouvia era o som do sapato no chão e o grasnar de um estranho pássaro que ia logo a sua frente, como lhe guiando o caminho. Parecia-se com um corvo, de penas negras como o breu, porém mais espessas e com um formato diferente, quase triangular. O bico e os olhos vermelhos. Tinha no olhar uma sinistra satisfação enevoada. O pássaro parecia guiá-lo para uma espécie de luz, que julgou ser o fim do túnel. Foi seguindo a criatura, cada vez mais rápido, a passos largos para acompanhar seu voo apressado e desajeitado. A luz brilhava mais e mais intensa, se aproximava, esquentava seu corpo, parecia atingir os ossos, e então finalmente transpassou-a.
Sentia-se confuso e um pouco cansado. Ofegante e sem saber o que se passava abriu os olhos de vagar. Após uma rápida olhada ao redor e algumas pestanejadas sonolentas, reconheceu o próprio quarto e a própria cama, na qual estava deitado. Tudo ficou claro. Obviamente estivera sonhando. Um sonho um tanto esquisito, devo concordar, mas ainda assim, um sonho. Levantou-se, lavou o rosto, mudou de roupa, e foi preparar seu café da manhã. Um pingado com muito café e pouco leite, e quatro torradas, duas com manteiga e duas com geleia de amora, era o que comia todas as manhãs, e uma das coisas que mais lhe agradavam em todo o seu dia.
Pouco tempo depois saiu de casa, trancou a porta e se preparou para mais um dia tedioso e repetitivo de trabalho. Sua vida parecia sempre um replay, dia após dia. E se não fosse pelos sonhos, um o mais diferente o possível do outro, acreditaria que era realmente isso o que acontecia. Porém neste dia sentiu um impulso diferente. Decidiu-se, sem saber porque, a ir ver o mar antes do trabalho. Entrou então no carro, e dirigiu até uma colina que ficava a poucos quilômetros dali, à margem do oceano.
Ao chegar foi direto para a parte mais alta. Parou ali observando as águas. A grama verde e úmida de orvalho sob os pés descalços (deixara os sapatos no carro, seria besteira usá-los ali), e o perfume de rosas, violetas e margaridas entrando sutilmente pelas suas narinas, que por alguma razão desconhecida sangravam. A brisa fresca do mar acariciava-lhe gentilmente as maçãs do rosto. Estava tudo calmo e tranquilo, era uma perfeita manhã de primavera. Uma manhã perfeita para se tirar uma vida.
Estava agindo de forma totalmente impulsiva, guiado por algo que não tinha ideia do que podia ser, mas tinha certeza de que era bem maior do que sua própria vontade. Podia sentir isso pulsando em suas entranhas, sendo bombeado pelo coração para as veias, entrando e saindo dos pulmões. Tudo o que sabia agora era que queria chegar no mar, logo ali, colina abaixo. A encosta era muito íngreme, quase vertical, o que ajudaria no mergulho. Eram só ele e o lindo mar azul. Nada de patrão, de proprietário cobrando aluguel e colegas de trabalho contando sobre suas vidas felizes, como se zombassem da sua própria miséria. Nada de ex-mulher cobrando pensão, ou filhos dizendo o quanto seu padrasto era maravilhoso. Nada de cuidar da mãe que vegetava, ou decidir qual dos irmãos ficaria com a casa. Nada de empregada cometendo pequenos furtos, ou brigas de trânsito, ou filas de banco, ou vizinhos inoportunos, ou pregadores nas praças, falsos amigos, pessoas interesseiras, cobrança, cobrança, cobrança. Estava tudo a um passo do fim, dali pra frente só lhe restava ser livre, bastava seguir o impulso. E foi exatamente o que fez.
Alçou seu voo para a paz, correu desabalado em direção à luz, mergulhou pela liberdade. E foi então que sua cabeça atingiu uma enorme rocha. O crânio, tal qual fruta madura que cai do pé, esmagou-se na colisão. O sangue escorria pelas pedras, tingindo-as de vermelho rubro. Não podia mais sentir o perfume das flores. Aqui e ali era possível ver pedacinhos de massa cefálica adornando a paisagem, e servindo de banquete para uma certa ave que, tão logo teve fim o espetáculo daquele pobre infeliz, pôs-se a desfrutar. Era um pássaro estranho, moribundo. Parecia-se com um corvo, de penas negras como o breu, porém mais espessas e com um formato diferente, quase triangular. O bico e os olhos vermelhos. Tinha no olhar uma sinistra satisfação enevoada.

Um comentário:

Daniel disse...

Confesso que não li, mas que achei muito bonito. Parabéns!